Comunidade de corrida de rua reage ao projeto que obriga apresentação de atestado médico em provas de Salvador
- Tiago Queiróz
- 12 de nov.
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Um projeto de lei que tramita na Câmara Municipal de Salvador tem gerado grande debate entre corredores e organizadores de eventos esportivos da capital. De autoria do vereador David Rios (MDB), a proposta estabelece a obrigatoriedade da apresentação de um atestado de aptidão física, com validade de até seis meses, como condição para inscrição em corridas de rua competitivas realizadas na cidade.
O vereador argumenta que a medida visa garantir a segurança dos atletas e prevenir problemas de saúde, citando o aumento de casos de morte súbita em corridas, inclusive entre jovens. Segundo ele, exames simples, como o eletrocardiograma e o teste ergométrico, podem detectar doenças cardíacas silenciosas e evitar tragédias.
Pelo texto, o documento deve ser emitido por um médico com registro no Conselho Regional de Medicina (CRM) e poderá ser entregue presencialmente ou de forma digital. Os promotores das provas deverão informar a exigência de forma clara nos materiais de divulgação e inscrição. O descumprimento poderá resultar em advertência, multa de 1.000 UFMs e, em caso de reincidência, suspensão do alvará por dois anos.
A proposta tem dividido opiniões entre os praticantes e promotores de corridas na Bahia.
Para Douglas Cerqueira, CEO da MP3 Marketing — empresa especializada na organização de eventos esportivos —, o projeto, embora tenha uma boa intenção, pode gerar impactos sociais negativos.
“Em condições ideais, seria natural que todos os atletas passassem por uma avaliação médica criteriosa. O problema é que não vivemos esse contexto. Nosso sistema de saúde enfrenta diversos desafios, e as pessoas em situação mais vulnerável têm ainda mais dificuldade de acesso. O atendimento particular é restrito a poucos, e o público, apesar da qualidade, não consegue atender a todos como deveria. Isso cria uma realidade em que, principalmente os mais carentes, acabam sem condições de obter o atestado e, consequentemente, ficam de fora das provas”, afirma.
Cerqueira alerta ainda para o risco de desestímulo à prática esportiva.
“O que de fato causa problemas de saúde não é a corrida de rua, e sim o sedentarismo e a obesidade. Em vez de estimularmos a prática de atividade física, o combate ao sedentarismo e a conscientização sobre exames preventivos e alimentação saudável — o que leva as pessoas a cuidarem melhor da própria saúde —, corremos o risco de adotar políticas restritivas que só vão aumentar o sedentarismo e as doenças cardíacas. Estaríamos, assim, desestimulando justamente a participação em provas oficiais, que são grandes catalisadoras dessa mudança de estilo de vida.”

Já o educador físico e promotor de corridas Jardel Moura, da assessoria esportiva que leva seu nome, ressalta que "o debate é importante para reforçar a conscientização sobre a necessidade de exames médicos regulares", mas pondera que "a obrigação legal pode não ser o melhor caminho".
“Sou totalmente a favor da conscientização da população sobre a necessidade de realizar, pelo menos uma vez por ano, um check-up médico. Esse é um tema muito presente nas provas de longa distância e ultramaratonas das quais participamos pelo Brasil e pelo mundo. Destaco a importância de uma avaliação médica anual, tanto clínica quanto cardiológica. Isso é fundamental para a prevenção e a descoberta precoce de possíveis doenças”, explica.
Moura lembra que os regulamentos das corridas já incluem uma cláusula de responsabilidade do participante, em que ele declara estar em boas condições de saúde.
“Nos próprios regulamentos das corridas já existe essa exigência de que o atleta, ao se inscrever e concordar com as regras, declara estar em plenas condições de saúde para participar de um evento que exige esforço físico intenso. O problema é que muita gente não lê o regulamento.”

O treinador também chama atenção para outros fatores que podem provocar complicações, mesmo em pessoas com atestado em dia.
“Desidratação, calor excessivo, ingestão de bebida alcoólica no dia anterior, uso de estimulantes como pré-treinos à base de cafeína e outras substâncias, além da falta de preparo físico e de nutrição adequada, são situações que aumentam o risco de mal súbito durante a atividade”, alerta.
Especialista defende avaliação individualizada e preventiva
Com 15 anos de atuação e especialização em cardiologia e medicina esportiva, o médico Eduardo Lisboa destaca que o atestado médico pode ter papel importante — sobretudo para quem está iniciando ou retomando atividades físicas após longos períodos de inatividade.
“Quando colocamos a corrida de rua com um olhar competitivo, onde ocorre muitas vezes uma tentativa de superação dos seus limites por parte dos corredores, acredito que há uma necessidade de melhor avaliação da saúde. Destaco principalmente para aqueles que vinham sedentários por longo período, que já tenham uma idade mais avançada, ou até mesmo algum problema de saúde em tratamento - como a Hipertensão Arterial ou Diabetes.”, explica.

“O atestado aí não é simplesmente uma formalidade, é um processo de autoconhecimento da saúde e dos seus riscos. É analisar, de forma individual, como seu corpo pode reagir a um esforço mais intenso ou a uma condição desafiadora. Na medicina do esporte, bem como na cardiologia, já existe as orientações muito bem validadas baseado em idade, tipo de esforço e condição de saúde para que tipo de exame ou teste o esportista precisa passar.”, acrescenta.
"Qualquer avaliação médica preventiva, principalmente cardiológica, ocorre no intuito de estratificar o risco. Entender se é baixa ou alto, se precisa de medicamento ou algum tratamento mais invasivo. Ou, ao menos, uma orientação em relação a moderação e intensidades. Direcionar através de avaliações objetivas o quanto está seguro e o quanto poderá ocorrer aumento de riscos. Sobre as estatísticas, está claro cientificamente que as avaliações pré participação esportiva (APP) reduziram eventos de morte nos esportes competitivos. O futebol é um grande exemplo disso, sendo hoje obrigatório para qualquer jogador que participa de competições".
Entre os principais riscos cardíacos de quem participa de provas sem avaliação médica prévia, o cardiologista cita as arritmias graves e os infartos, que podem levar a uma parada cardíaca ou morte súbita — muitas vezes em pessoas aparentemente saudáveis.
“Esses eventos podem ocorrer em quem não apresenta sintomas. É o que chamamos de doença aterosclerótica subclínica. Esses casos precisam de um olhar cuidadoso e direcionado para serem identificados antes que algo grave aconteça”, alerta.
"Um corredor jovem, com menos de 35 anos, que na avaliação não apresenta problemas de saúde ou sintomas, uma avaliação anual será suficiente. Mas se temos uma pessoa 40 +, com histórico familiar de doença cardíaca, tem uma hipertensão que não está bem controlada ou está com sobrepeso há alguns anos, uma revisão mais precoce deve ser programada para entender evolutivamente os riscos e reduzir eventos, além de promover mais segurança durante seu aumento de carga de treinos e provas", finaliza Lisboa.




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